Viver no mesmo tempo que ele já é privilégio. Imagina então viver no mesmo espaço? A poucos bairros de distância. É como viver o presente no presente. Sabe como é? É sentir a vida pulsando através de palavras, de métrica, de cordel. Se seria destino ou não, isso ninguém saberia, mas passar despercebido por esse labirinto confuso situado entre o nascer e o último respirar, aí não seria uma opção.

É claro, eu não poderia estar falando de outra pessoa que não fosse o nosso inigualável mestre Antônio Francisco, grande poeta que Mossoró tem a honra de chamar de seu e que completa os seus 72 anos de vida. 

FOTOGRAFIA: Érica Lima.

O fruto do amor entre seu Francisco Petronilo de Melo e dona Pêdra Teixeira de Melo nasceu no dia 21 de outubro de 1949. Há 72 anos. Idade esta que ele carrega absorvendo experiências, histórias, caminhos, emoções, reconhecimentos, decepções, mas sobretudo, arte, muita arte. 

Antônio Francisco sempre foi uma criança apaixonada pelo tato. Sentir o chão, a terra, o suor, o cheirinho do café, sempre foram alguns dos seus maiores companheiros. Hoje, testemunhas da sua existência nos seus cordéis. Quem não o deixa mentir é a sua bicicleta, parceira de tantas viagens e momentos. 

Foi aproximadamente aos 40 anos quando ele tomou gosto de fato pela literatura e, consequentemente, outras linguagens também embarcaram nessa paixão, como a xilogravura e a história. O seu primeiro cordel, cujo nome é “Meu Sonho”, foi escrito em 2006, mas parece que foi idealizado nos tempos atuais, ou até mesmo, como sendo uma carta para o futuro. Ele diz assim:

“Cansado de ler jornais
Fui me deitar descontente
Pensando em tudo que li
Adormeci lentamente
Sonhei que eu acordava
Num planeta diferente

Era um planeta coberto de planta
De todas as cores
As lagoas orquestradas
Por marrecos cantadores
E as abelhas bailando
Por entre as pétalas das flores”

E aí, ele continua:

“Depois eu parei para ver
Perto de uma pedreira
Quatro homens construindo
De pedra, uma cadeira
E eu perguntei a um deles:
‘Por que não faz de madeira?’

Disse: ‘Não temos coragem
De cortar uma árvore bela
Para fazer uma cadeira
Somente para sentar nela
Achamos melhor ficarmos
Sentados na sombra dela’

Com aquela simples resposta
Sem querer me envergonhei
Para disfarçar a vergonha
Numa pedra eu me sentei
‘Aonde fica a cidade?
Por favor’, eu perguntei

Disseram: ‘siga essa trilha
Com o nome de liberdade
Logo mais tem uma placa
Que indica felicidade
Vá por onde a seta aponta
Que chegará à cidade’

[…]

“Quando saímos da praça
Vi num pé de buriti
Uma linda águia azul
Ao lado de um bem-te-vi
Eu perguntei: ‘Onde fica
O zoológico daqui?’

Respondeu: ‘Não temos jaulas
Nem gaiolas na cidade
Aqui animais e pássaros
Convivem com a liberdade
Para nós é mais barato
Criá-los fora da grade

Eu disse: ‘no meu planeta
Se um pássaro cantar bem
Vai morrer por trás das grades
Sem ter matado ninguém
E cantar para seus algozes
A troco d’água e xerém

O meu planeta, senhor
Do seu é bem diferente
No meu, pai vai ao shopping
Leva seu filho inocente
Comprar armas de brinquedo
E dar a ele de presente

E aqui nesse planeta
O agricultor tem nome
No planeta onde eu moro
Esse homem passa fome
Lavra a terra, planta, colhe
E muitas vezes nem come”

E aí, ele finaliza:

“Eu disse: ‘sou d’um planeta
Que só vive em pé de guerra
Onde fabricam doenças
Onde a justiça mais erra
Numa gaiola de loucos
Com nome Planeta Terra’

Os olhos daquele homem
Aumentaram mais a luz
E perguntou: ‘é verdade 
Que lá fizeram a cruz
Para crucificar o santo
Conhecido por Jesus?’

Fui responder: ‘é verdade
Nós matamos o nosso rei’
Fui falar, abrir a boca
Faltou voz, eu não falei
Quis correr, não tive forças
Faltou fôlego e acordei

Acordei para chorar
Debruçado no meu leito
Daquele sonho para cá
Nunca mais dormi direito
Hora tentando esquecer
Hora querendo fazer
Um mundo daquele jeito”.

Como não terminar de ler esse trecho do cordel Meu Sonho sem perceber os olhos marejados… Como? Antônio tem esse poder que mais ninguém tem. Mais ninguém mesmo, porque o dele é só dele. 

FOTOGRAFIA: Célio Duarte.

Antônio Francisco tem nome de Brasil. O verdadeiro. O que vale a pena. O que se faz natureza, água, fonte, vida. É nas pegadas simples e fortes, nas rugas vividas de um eterno menino, nas mãos de quem tanto já sobreviveu, nos olhos presentes e cansados, na memória inquestionável, que o nosso poeta existe. 

Imagina viver num mundo sem Antônio Francisco? Nem imaginável isso é. Viver sem Antônio seria desconhecer a sensibilidade que o mundo real oferece, como uma criança que não sabe andar de bicicleta por não saber que ela existe. No caso de Antônio, acredito que não é ele que traz os temas que quer se debruçar; são os temas que o procuram esperando que ele escreva-os. 

E assim, os mais de dez livros que ele já publicou em todo o Brasil, o reconhecimento mundial de sua poesia, a admiração vinda de todos os quatro cantos do país e por nomes nacionalmente conhecidos, as tantas pesquisas que o tem como objeto de estudo, as muitas universidades que ovacionaram os muros ao recebê-lo em cada uma, a homenagem na Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), onde ele ocupa a cadeira de número 15, cujo patrono era simplesmente Patativa do Assaré, tudo isso é consequência do talento e da simplicidade de um homem que nasceu e foi criado na sua querida Lagoa do Mato e que sente a vida na sua plenitude ao tomar o seu café preto com cuscuz depois de escrever mais uma poesia.

Mais um que fica como legado para que possamos nos lembrar sempre que o dia 21 de outubro é o Dia Mundial de Antônio Francisco!

Essa é a singela homenagem do blog Reticências Culturais para o nosso mestre Antônio Francisco!

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