Escrever sobre quem tem a capacidade de transcrever o que sente numa tela é quase impossível de ser realizado, porque é tentar desenhar em palavras o que a outra escreve em cores. Além disso, o que torna mais difícil é o fato de escrever não só sobre a criação, mas sobretudo, acerca da criadora, que é tão quanto o seu próprio trabalho. Nesse caso, seu nome é Malu, artista que vem do mar e atraca no cais de Mossoró-RN. Artista convidada para compor a exposição visual e virtual do Reticências Culturais deste mês de novembro.
Sua cidade-natal: Mossoró. No entanto, Malu se reconhece filha da tão desejada Praia de São Cristóvão, já que foi lá onde ela viveu todas as suas décadas de vida. Não havia como essa sereia não ser artista. É (talvez) a forma que ela encontrou para tentar falar o que nem sempre precisa entender, mas que quer dizer; fazer; externar. E que bom que ela faz isso. Ainda bem. Caso não, perderíamos a chance de fruir obras de arte tão puras e gigantescas, como as dela.
Em 2016, Malu voltou a morar na capital da cultura e, numa coincidência do destino, foi nesse reencontro que ela passou a (re)descobrir a sua própria cultura, aprofundando-se, dedicando-se e vivenciando ainda mais as artes visuais.
Esse primeiro contato aconteceu num momento conturbado da sua existência. Segundo ela, essa união veio como salva-vidas para uma que precisava ser salva. Era o que bastava para que surgisse um dos sentimentos mais verdadeiros em Malu: o de pertencimento. No caso dela, à arte.
“Não sei se tenho como dizer que a pintura me descobriu, ou que eu descobri a pintura, mas definitivamente destrinchei a arte, sabe? Senti não como alguém que apenas aprecia, mas como alguém que sabe de onde aquilo vem e aonde pode chegar”.
Malu, artista visual.
As primeiras lembranças do que já era a arte pulsando nas suas trocas empíricas vem ao lado da sua mãe, enquanto acompanhava a filha em algumas colagens com revistas antigas. Isso, ainda criança. Malu recorda-se também das aulas de pintura que a cunhada da sua mãe lecionava em Cristóvão, retratando a natureza, a praia, o mar; fator certeiro no enraizamento dessas memórias na mente de Malu. “Acho interessante que só consigo relembrar dessas experiências da infância que envolve arte”. É, Malu, a arte tem esse poder transformador.
“Houve o momento da minha vida que uma chave destrancou uma fechadura e a porta era a arte. Vi que tipo de passagem era aquela, e como era bonito poder transitar”. Malu, artista visual.
Por ser artista, digo, ARTISTA, Malu gosta de manusear tintas em telas, mas não se restringe a só. Experimentações com fotos, colagens, outros materiais, e até o próprio corpo, estão dentro desse leque de possibilidades. Tendo as palavras “felicidade” e “euforia”, a sua troca enquanto ser com a sua arte acontece.
O momento de insight, onde mora aquele estalo artístico, para a nossa artista metade-praia-metade-sertão, vem do contato que a pessoa tem com a Fonte, ou seja, o “gatilho” do qual faz surgir aquele desejo incessante de expelir o que se quer expressar. “Gatilho” este que pode ser um sentimento, uma ocasião, uma troca, uma mensagem, enfim, tudo.
Momentos de felicidade foram alguns dos quais enalteceu a criatividade de Malu, segundo ela. Mas nem tudo são flores, principalmente sendo mulher, negra, periférica, potiguar, artista, vivendo no Brasil de 2021… um ano de ressignificações, provações e passagens, onde os sorrisos tiveram que ser disfarçados e as dores, abraçadas.
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Perguntando a Malu sobre a relação com a sua arte, ela me devolve com tanta sinceridade de um peito aberto que fala com a reverberação de tantas vozes antepassadas e concomitantes, que não sou eu quem deve falar o que ela me respondeu, mas sim, ela mesma:
“Aprendi que não preciso estar feliz para pintar, mas posso deixar que a arte faça seu papel de cura em mim, que me liberte do que não me fizer bem. Acredito que o ato de se expressar além de tudo, também sirva muito para essa finalidade, liberar o que não precisa estar só aqui.
Minhas últimas pinturas tem um ar gigante de afeto diaspórico, eu racializei minha dor pela primeira vez em vida nas minhas pinturas, e ainda me encontro em processo da busca de quem eu sou. Não é nenhum pouco fácil de saber, enquanto constantemente se é posta em prova por ser preta, é um jogo psicológico muito grande e o racismo é um trauma nunca ou pouco tratado em nós. Os donos da bola desse jogo, estão sempre em vantagem.
Vê-se bastante a mulher negra imageticamente sendo exaltada nas artes visuais por artistas brancos, enquanto na cena artística em si, é muito mais simples para essas pessoas utilizarem dos nossos traços para exaltarem a si próprios e suas habilidades, do que nós mesmas contarmos nossas histórias e de fato sermos ouvidas, nossa arte de fato ser apreciada, e simplesmente não me parece justo estar mais no papel de musa do que de colega de trabalho, por exemplo.
Então, ao me sentir só em diversos aspectos da vida, é na diáspora e em outras vivências pretas, que eu me agarro pra seguir minha jornada, me inspiro em cada preta e preto que cruza meu caminho para somar no sonho grande. Acredito que meus trabalhos recentes estejam dialogando com esse pensamento.”
Entende por que Malu é fantástica? A arte das cores e das telas reverbera para as palavras, mas tudo nasce de um só lugar: o seu corpo enquanto um “eu” nesse mundo.
É por esse e por tantos motivos que o Reticências Culturais a convidou para assinar a exposição visual e virtual de novembro. As obras que ela inseriu aqui são algumas que fazem parte da exposição Corpo Diaspórico, que será apresentada inteiramente no SESC Mossoró, no evento Juntando Poesias, a partir do dia 12 de novembro. A exposição será gratuita e aberta ao público.
Por enquanto, vocês ficam curtindo um pouquinho do belíssimo trabalho de Malu aqui no Reticências Culturais!
Aproveitem…
One reply on “A arte por trás das telas de Malu, aquela que pinta com o corpo”
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