Leonino como é, viver sem deixar legados talvez não fosse uma opção. A começar pelo seu “Marcus”, com “U”, para que não restem dúvidas. Neto do Brasil, filho de Mossoró, nascido lá nas Barrocas, Marcus Vinícius Filgueira de Medeiros faz do dia 18 de agosto também o seu. Nestas terras desde 1973, o filho de Carminha e de Dedé, neto de dona Maricota e seu Luizinho, aos poucos cresce e se torna uma importante figura para a cultura mossoroense. 

Hoje, você vai conhecer um pouco mais de Marcus Vinícius aqui no Reticências Culturais. Nós o convidamos para assinar a playlist do mês de dezembro da plataforma. E, claro, não havia outro tema melhor para desbravarmos o artista, se não “Cultura Popular”. 

#paracegover: Marcus Vinícius usa óculos de grau, chapéu e uma camiseta preta com detalhes brancos. Ele está dando uma entrevista. À sua frente, há um microfone com esponja azul com o nome “UERN TV”. Tem uma mão segurando o microfone. Por trás de Marcus, há um painel vermelho. Fotografia: desconhecido.

O menino de outrora, criado às margens do Rio Mossoró, fortalece-se nas raízes para se debruçar em cidadania e sociedade na sua vida adulta. Paralelo a isso, a arte surge na sua vida. Inicialmente, o encantamento vem da cultura junina. Posteriormente, a folclórica. Em seguida, o teatro, as danças populares, a literatura… quando Marcus se deu conta, já estava inundado. 

Ele conta que o primeiro contato veio no Centro Social Inácio Vale, no bairro onde ele cresceu. Primeiro toque “com um mundo que seria o meu mais tarde”. Ao mesmo tempo, o terraço da casa dos seus avós maternos era o único palco possível naquele momento. Único e suficiente para um artista que se descobria gradativamente artista. Ver a sua avó contando histórias naquele infinito particular foi essencial para o Marcus de hoje. “Eu ficava encantado, meus olhos não paravam de brilhar nem meu coração de ser feliz”, relata Marcus Vinícius ao relembrar da vó.

Daí em diante, veio a pastoral da juventude do meio popular, a universidade e Pernambuco. Neste Estado, veio o maracatu, o frevo, a ciranda, o mamulengo, a quadrilha estilizada, o cavalo marinho, Antônio Nóbrega, o Nascimento do Passo, Ângela Belfort, Ariano Suassuna, o Movimento Armorial, e com tudo isso, um novo Marcus Vinícius.

“A arte sempre foi o maior legado da minha existência, sempre dialoguei com as várias linguagens da arte e a quis por perto de mim”.
Marcus Vinícius, escritor e contador de histórias.

As cores, a pintura, o artesanato, o teatro, a dança, sempre foram elementos que acompanharam o artista mossoroense. Ao longo da vida, participou de diversos cursos, oficinas, montagens de espetáculos, até que percebeu que o caminho não tinha volta. E seguiu. 

Nessa viagem ao lado da arte, já lançou sete livros – entre eles, Palavra Dita (Coleção Mossoroense, 2009); Uma História Bem Contada (Queima Bucha, 2019); O Auto da Mula Sem Cabeça (Queima Bucha, 2020); A Menina e o Balanço (Queima Bucha, 2022) e O Fio da Meada (Queima Bucha, 2022) -; participou do Memorial da América, em São Paulo/SP; atuou na primeira edição do Chuva de Bala no País de Mossoró; realizou o primeiro encontro de folclore da cidade; tem um personagem chamado “João Ninguém da Silva”; ganhou em primeiro lugar, na categoria Poema, o concurso da Academia Mossoroense de Letras, em 2017; entre outros feitos.

Marcus conta que uma das lembranças que mais lhe marcaram foi durante sua passagem no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), que hoje não existe mais. Ele diz que foi convidado a coordenar os grupos de arte popular existentes em Mossoró para levá-los ao PETI. Foram grupos de Pastoril, xaxado, maracatu, dança das guirlandas, Bumba Meu Boi, dança contemporânea, Marujada, Nau Catarineta, e muito mais. 

Além de Marcus ter sido a ponte para que a arte pudesse salvar vidas externas, a mesma também salvou a si próprio. Num momento do seu caminho, ele teve câncer, e foi a arte que lhe deu forças para seguir no tratamento. O artista relata que entre cirurgias, quimioterapias, radioterapias e exames, o envolvimento com a cultura junina foi o combustível que ele precisava e o que aliviava qualquer dor. Hoje, ele está bem, e a cultura se mostrou mais uma vez capaz de cura.

#paracegover: Marcus Vinícius está falando no microfone e tem dois mamulengos pretos nas suas mãos. Marcus Vinícius usa óculos e tem cabelo curto. Fotografia: desconhecido.

Sabendo da história que Marcus Vinícius tem, juntamente à cultura popular, haveria de ser esse tema para que o artista pensasse músicas a partir de tal. Ele vai mais a fundo. “Por que existe uma cultura popular? […] Para mim, cultura é cultura! Processo de cultivo ou de produção para todos e todas”. É isso! Ao ser questionado sobre o que seria Cultura Popular para ele, o artista discorre acerca de uma reflexão extremamente pertinente não só para o campo da arte, mas para toda a sociedade como um todo. 

De acordo com a análise de Marcus, as pessoas, a linguagem e o sistema criaram uma forma de colocar valor naquilo que é para o povo, com o povo e produzido pelo povo, chamando tudo aquilo que pertence ao povo de “popular”, como se a grande massa só tivesse acesso àquilo que é fácil, barato, e que pertence ao tempo passado, onde tudo existia antes das novas tecnologias. 

É interessante essa reflexão, porque, ao longo da história, existiram e existem ocasiões, sobretudo de discriminiação, desigualdade social e preconceito, em que a palavra “popular” ganha um sentido secundário de baixo custo, vulgar, consequentemente, sem a legitimidade total que deveria ter. Marcus continua o raciocínio: “para muitos, a cultura popular não tem direito de evoluir, de ser contemporânea, de ser moderna, de fazer o uso das novas tecnologias, porque já quem pense que para o povo, o mínimo; e para a minoria burguesa, o máximo, a meritocracia”.

Assim, o poder público acha que a cultura popular é “a cultura de coitados, de pobrezinhos e pessoas que se contentam com um copo de suco e um cachorro quente como pagamento”, como explica o escritor. Trazendo para a escala municipal, é como se um palco minúsculo, sem visibilidade, com pouca divulgação, com pouca verba, dentro de um evento como o Mossoró Cidade Junina, fosse suficiente para representar a “Cultura Popular” como um todo. Como quem diz “é isso que temos para vocês”. Não. Não é.

De acordo com a reflexão de Marcus Vinícius, a população, de um modo geral, também traz esse sentimento perante à cultura popular dentro de si, como se o artista dessa linguagem não pudesse sonhar alto ou quisesse ocupar grandes produções, espaço ou lugares de destaque. No final das contas, o canto mais escuro, mais inacessível, mais barato, acaba sendo destinado à essa arte. Ambiente utilizado para “justificar” cachês irrisórios que são dados, muitas vezes, como quem cobra um favor, uma obrigação. 

Falando sobre desvalorização, não há como deixarmos de permear os desprazeres vividos em solo mossoroense. Dizem que amores intensos são os que mais doem. Acredito que acontece mais ou menos assim entre Mossoró e a arte. Numa terra que brota cultura, muito se deixa a desejar. Para o contador de história, os coronéis de Mossoró passaram, mas deixaram os seus apontamentos como legado, principalmente no que se refere à cultura: interesses individuais, olhares particulares, centralizações, sem perspectiva de crescimento. 

“Aqui é um chão de muitas iniciativas, mas de pouca política de valorização”.
Marcus Vinícius, escritor e contador de histórias.

Diante de tudo isso, há esperança, e o maior desejo: democracia, porque, para o artista, é através dela que as coisas acontecem. Ele almeja que a arte e a cultura mossoroenses encontrem caminhos e políticas públicas de fato, e que todas as manifestações possam ser contempladas. Que o reconhecimento multicultural que falta neste solo seja visibilidade, fazendo com que as várias linguagens existam, sobretudo, na hora de fazer valer o direito de todos e todas. 

Além de tudo isso, que a arte e a cultura sejam sementes da floresta que semeia em Marcus. Mesmo sabendo da responsabilidade da questão, perguntei para o artista o que seria arte, e a sua resposta veio como uma dose de esperança:

Às vezes é difícil de conceituar algo que não é tão preciso. Para mim, arte é combustível. É o que me move e me conduz a criar sempre. É poder enxergar a vida de dentro para fora e de fora para dentro na descoberta do ético/estético da vida. A gente fica lendo páginas e páginas para poder compreender o que é arte e ela se apresenta pra gente como gaivota! Porque a arte é esse pássaro que se empluma, aprende o vôo, indica a direção e vai nos mostrando as catarses, as mímesis, as verossimilhanças, as estéticas, os estilos…Mas saindo desse mundo mais acadêmico: a arte é o que me fez sorriso. É o que me faz cômico e trágico ao mesmo tempo. É tudo aquilo que me possibilita atuar na vida entre palavras, movimentos, traços, levezas e novas possibilidades”

Atualmente, Marcus Vinicius pesquisa sobre os contadores de história da cidade de Mossoró/RN no curso de mestrado interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas (PPGICSH), da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). E agora também tem uma playlist aqui no Reticências Culturais para chamar de sua. 

Aproveitem…

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One reply on “Playlist do mês por MARCUS VINÍCIUS”

  • dezembro 5, 2022 no 8:19 pm

    Conheci Vinicius quando trabalhava na 12ª Dired (hoje, Direc). Chegamos a dar início a alguns trabalhos juntos. É uma pessoa competente, um ótimo proseador e tem, na arte de educar (arteducador), o complemento que precisa para realizar o grande sonho de poeta. Parabéns, pela história de vida e pela competência profissional.

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